sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Pausa para reflexão

Mantra para lidar com tênis usados e outras bugigangas tóxicas

José Maurício de Oliveira*

Calma: não é culpa sua - ou apenas sua. Há, sim, um tantinho de terrorismo nessas listas imensas de coisas que você deve fazer para impedir que todos morram soterrados pelas montanhas de lixo que descartamos por aí.

Sempre que as leio, fico com aquela impressão incômoda de que, em última instância, eu sou o responsável pela crise ambiental em que nos metemos - e por sua solução, quando criar vergonha na cara e mudar meus hábitos e escolhas.

É verdade que alguns são mesmo injustificáveis, como fumar um cigarro atrás do outro enquanto batuco aqui no teclado. Outros nem tanto, mas não vejo problemas em fazer diferente.
A barra pesa mesmo quando penso, por exemplo, em aposentar o notebook movido a lenha que usei nos últimos cinco anos - e sou até capaz de ver o presidente do sindicato dos redatores de listas com seu imenso dedo apontado na minha direção, bradando ao mundo que estou cometendo um crime contra a humanidade.

Aprendi a exorcizar essa figura gritando um palavrão: LOGÍSTICA REVERSA PÓS-CONSUMO!!!

Calma, de novo. Não tirei esse mantra de nenhum ritual pagão do povo veda ou coisa que o valha. Tá certo que saiu da cabeça de algum economista ou engenheiro, o que pelo menos pra mim acaba dando no mesmo. Mas é bem mais simples do que parece.

É como dizer que tudo o que sai das linhas de produção tem de ser recolhido ao final do ciclo de vida, cabendo ao Estado e às empresas (não necessariamente nessa ordem) a responsabilidade de prover os meios para que isso aconteça.

É a lógica que preside os sistemas públicos de coleta de lixo, por exemplo. Você descarta, o Estado recolhe e cuida da destinação final, em aterros sanitários, incineradores etc. E também as redes de reciclagem e reaproveitamento, quase sempre precárias e informais - e aqui começa o problema que muitos tentam transferir exclusivamente para nós, consumidores.

A imensa maioria dos municípios brasileiros lida com o que descartamos pelo famoso programa mínimo: coleta aqui, ali e joga tudo junto mais lá na frente, nos lixões. E isso quando fazem. Há também algumas (poucas) regras específicas para resíduos perigosos à saúde pública, como os rejeitos radiativos e o lixo hospitalar, que nem sempre são seguidas. Nessa batidinha, o Estado toca a sua parte da partitura.

Já as empresas… bem, as empresas, com as raras exceções de praxe, parece que gostam mesmo é de assobiar e sair de fininho quando essa música toca. É como se elas dissessem:
— Quebrou, gastou, morreu? Problema seu, meu rei!

Não, definitivamente não é um problema só meu. Posso até consumir menos e melhor, como propõem os redatores de listas. Mas ainda assim, o que faço com a geladeira que minha sogra deu de presente de casamento há vinte e tantos anos? Com o monitor de fósforo verde do primeiro computador que comprei ainda nos tempos da reserva de mercado? Com o celular número 44 que herdei de um fura-filas da Telesp e arregaçou anos a fio os bolsos das minhas calças?
E isso sem contar coisas mais banais, de menor interesse arqueológico, como pilhas, baterias, cartuchos de impressora, entre tantas outras bugigangas tão tóxicas quanto tênis de adolescente.
O duro é saber que boa parte delas tem lá seu valor. Devidamente desmontadas, separadas e reprocessadas, podem retornar à ponta de entrada dos sistemas produtivos, ajudando a reduzir nossa pegada ecológica - outro objeto de fixação dos redatores de listas.

Custa às empresas, tão eficientes na criação de redes de distribuição de mercadorias, que costumam chegar até a porta de nossas casas, organizarem-se para recolher os cadáveres que nos obrigam a espalhar pelo caminho?

Pelo jeito custa, sim, mais do que gostariam de gastar após conferir as planilhas. Só isso poderia explicar porque o princípio da responsabilidade pelo ciclo de vida dos produtos, hoje tão aceito em tese quanto as práticas de eficiência energética e produção mais limpa, ainda não deixou o reino intangível dos simpósios e mesas-redondas.

É por isso que me propus a só levar a sério listas que comecem com a única ação que pode, no atacado, indicar o caminho para virar esse jogo sujo que fazemos contra nós mesmos:
— marcar dia e hora para reunir todo mundo, no mundo inteiro, nos locais públicos mais próximos de suas casas, para berrar em uníssono: LOGÍSTICA REVERSA PÓS-CONSUMO!!!
Talvez aí parem de nos tratar como consumidores e passem a nos ver como cidadãos.

*José Maurício de Oliveira é jornalista, separa o lixo e apaga a luz quando é o último a sair. Mas não acredita que vá salvar o planeta quando faz isso.
É diretor de Redação do Mercado Ético.
http://mercadoetico.terra.com.br/

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